“A saúde mental é uma das áreas mais negligenciadas da saúde pública. Quase 1 bilhão de pessoas vivem com transtorno mental, 3 milhões de pessoas morrem todos os anos devido ao uso nocivo do álcool e uma pessoa morre a cada 40 segundos por suicídio”[1]. A afirmação da Organização Pan-Americana da Saúde (órgão ligado a Organização Mundial da Saúde) serve de alerta para a importância do tema, ao mesmo tempo em que destaca o injustificado descaso com que tem sido tratado no mundo.

No Brasil, desde 2014, Associação Brasileira de Psiquiatria – ABP, em parceria com o Conselho Federal de Medicina – CFM, organiza nacionalmente o Setembro Amarelo, com ênfase a prevenção do suicídio. O tema é essencial. Não à toa, entre os objetivos do desenvolvimento sustentável, a Organização das Nações Unidas inclui o desafio, ou melhor, a meta de “promover a saúde mental e o bem-estar” (ODS n. 3).

É importante advertir que a pandemia amplia os riscos. “O isolamento social, o medo de contágio e a perda de membros da família são agravados pelo sofrimento causado pela perda de renda e, muitas vezes, de emprego”, adverte Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS)[2].

No plano jurídico, a saúde mental repercute das mais variadas maneiras.

Apenas para ilustrar alguns, no direito do trabalho, pode implicar incapacidade laboral. Nesse sentido, é importante lembrar que a “depressão é a principal causa de incapacidade em todo o mundo e contribui de forma importante para a carga global de doenças”[3]. Na esfera criminal, a incapacidade de compreender a ilegalidade de uma conduta ou se controlar para não realiza-la afasta a pessoa da pena, torna inimputável dizemos no jargão jurídico, e a submete a medidas de segurança, que no final das constas é uma modalidade de tratamento forçado.

No chamado direito civil, a incapacidade civil restringe atos patrimoniais. Por meio da curatela, mais conhecida popularmente pelo antiquado nome de interdição, promove-se pela via judicial a restrição temporária de certos atos. A perspectiva da loucura a ser controlada, ou associada ao perigo, cedeu espaço no direito brasileiro para uma compreensão inclusiva, sobretudo por meio da adoção no brasil da Convenção de Nova York sobre a pessoa com deficiência e a Lei Brasileira da Inclusão, mais conhecida como Estatuto da Pessoa com deficiência (EPD)[4].

Esse novo olhar amplia as hipótese de atuação de pacientes, cuja autonomia deve ser preservada na máxima medida possível,[5] em atenção a perspectiva de empoderamento que norteia o direito brasileiro. Aliás, é fundamental lembrar que a Convenção de Nova York sobre a pessoa com deficiência, além de ter sido incorporada como tratado de direitos humanos cumpriu os requisitos para a adoção como emenda constitucional, e desta maneira, é parte do próprio texto constitucional.

Em um clássico da literatura brasileira, O Alienista, Machado de Assis explora o tema da loucura. Seu protagonista, um médico que pesquisa o tema vive aventuras que muito bem refletem, anos depois, as transformações na maneira de lidar com o tema. Em uma passagem famosa, afirma “A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente”. Sua complexidade não permite enxergar como uma pequena ilha, o ser humano é complexo, incrível, único, e a saúde mental é um verdadeiro oceano que exige a máxima atenção.

Sob o prisma jurídico, ainda que de maneira lenta, o tema sofreu profunda transformação. Apenas para ilustrar, há grandes impactos na esfera trabalhista com uma nova visão sobre a depressão e o uso abusivo pelo empregados. Cuidados especiais são traçados no plano corporativo para assegurar a sucessão de empresas. Além disso, há uma maneira completamente nova de compreender a curatela (interdição).

Igualmente, houve modificações importantes na legislação de saúde mental, com a valorização dos princípios da Lei de Saúde Mental (Lei 10.216/2001), e a modificação das regras de internação por uso abusivo de drogas, prevista na Lei de Drogas (Lei 11.343/2006),[6] diante da edição da Lei 13.840/2019.

Como define a Corte Europeia de Direitos Humanos, ao julgar casos de internação psiquiátrica[7], a lógica excludente cede espaço para mínima restrição e perspectiva inclusive.

Ao finalizar seu famoso livro, Machado de Assis fala no fechamento do antigo manicômio, e ao fato de que o próprio especialista foi repensar seu agir: ““Fechada a porta da Casa Verde, entregou-se ao estudo e à cura de si mesmo”.  “Uma vez “fechada a porta da Casa Verde” é preciso abrir uma janela para a complexidade e para a adequada tutela da pessoa concreta”[8].

A loucura como mecanismo de exclusão deve ceder a perspectiva inclusiva, que concebe a pessoa vulnerável como alvo de proteção reforçada. Com mais ênfase ainda na pandemia, o momento é de solidariedade, inclusão, no direito e na sociedade. A saúde mental em suas variadas representações deixa de ser a ilha apontada pelo personagem, para ser reconhecida como tema, amplo, complexo e fundamental.

Gabriel Schulman

Advogado – Trajano Neto e Paciornik Advogados


[1] Organização Pan-Americana da Saúde: OPAS/OMS. https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6263:dia-mundial-da-saude-mental-uma-oportunidade-para-dar-o-pontape-inicial-em-uma-grande-escala-de-investimentos&Itemid=839

[2] Organização Mundial da Saúde. OMS: ‘O impacto da pandemia na saúde mental das pessoas já é extremamente preocupante’. 18.05.2020.

[3] Organização Pan-Americana da Saúde: OPAS/OMS. https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5635:folha-informativa-depressao&Itemid=1095

[4] SCHULMAN, Gabriel. Impactos do Estatuto da Inclusão da Pessoa com deficiência na Saúde :”acessibilidade” aos planos de saúde e autodeterminação sobre tratamentos. In: MENEZES, Joyceane Bezerra de. (Org.). Direito das pessoas com deficiência psíquica e intelectual nas relações privadas após a Convenção de Nova York e a Lei Brasileira de Inclusão. Rio de Janeiro: Processo, 2016, v. 1, p. 763-794.

[5] SCHULMAN, Gabriel. Consentimento para atos na saúde à luz da convenção de direitos da pessoa com deficiência: da discriminação ao empoderamento. In: BARBOZA, Heloisa Helena; MENDONÇA. Bruna Lima; ALMEIDA Jr., Vitor Azevedo. (Org.). O Código Civil e o Estatuto da Pessoa com deficiência. 1ed.Rio de Janeiro: Processo, 2017, v. p. 271-297.

[6]  SCHULMAN, Gabriel. Internação forçada, saúde mental e drogas: é possível internar contra a vontade?. 1. ed. São Paulo: Foco, 2020.

[7] SCHULMAN, GABRIEL; ZANLORENZI, R. O. R. Saúde Mental e Internação Psiquiátrica na Corte Europeia de Direitos Humanos. In: DALLARI, Sueli Gandolfi; AITH, Fernando; MAGGIO, Marcelo P.. (Org.). Direito Sanitário: Aspectos contemporâneos da tutela da saúde. 1ed.Curitiba: Juruá, 2019, v. 1, p. 77-103.

[8] SCHULMAN, Gabriel. Internação forçada, saúde mental e drogas: é possível internar contra a vontade?. 1. ed. São Paulo: Foco, 2020.