A produção e comércio de combustíveis e derivados de petróleo sempre foi objeto de pesada tributação. Tanto é verdade que as operações com tais produtos sempre esteve na vanguarda de modalidades especiais de tributação, seja a monofasia adotada pela União no caso da Contribuição para o PIS e da COFINS, seja a substituição tributária implantada pelos Estados e Distrito Federal para fins de cobrança do ICMS.

O objetivo desses mecanismos sempre foi claro: garantir a arrecadação total por meio das refinarias e, assim, evitar a necessidade de fiscalização de milhares de estabelecimentos comerciais.

Mais recentemente, preocupado com os reflexos dos recentes aumentos no preço da gasolina e do óleo diesel – e para que não se repitam os episódios de desabastecimento vivenciados durante a greve nacional dos caminhoneiros ocorrida em maio de 2018 –, o Presidente da República tornou pública a intenção do governo federal em encaminhar ao Congresso Nacional um projeto de lei complementar para alterar a incidência do ICMS sobre combustíveis e derivados de petróleo.

Falou-se em mudar o teor da Lei Complementar nº 87/96 (Lei Kandir) para que o ICMS incida apenas na operação de venda praticada pelas refinarias – algo similar à tributação monofásica já existente para a Contribuição para o PIS e a COFINS – e também se aventou a possibilidade de estabelecer uma “tributação fixa” por unidade de volume de combustível comercializado, em montante a ser deliberado pelas Assembleias Legislativas.

Ao que parece o governo federal pretende tornar o ICMS uma imagem e semelhança da Contribuição para o PIS e da COFINS federais.

O objetivo, para ser alcançado, depende de difícil consenso político – pois, afinal, interesses arrecadatórios dos Estados e do Distrito Federal estão em jogo (princípio federativo) –, além de ser de duvidosa constitucionalidade.

Ora, o ICMS é um imposto e, por isso, sua sistemática de incidência é bastante diversa daquela aplicável a contribuições especiais. Ademais, a Constituição da República não autoriza que o ICMS tenha base de cálculo dada em unidade de medida e alíquota especifica em dinheiro. Para reformas desse jaez não basta lei complementar.

O projeto, pelo menos no discurso, parece interessante, porquanto voltado à redução da carga tributária e ao combate à sonegação fiscal, mas é certo que deverão ser respeitados os princípios constitucionais.

Mais ainda. A experiência na área nos diz que medidas de natureza exclusivamente tributária não terão a eficácia desejada para o mercado como um todo (e principalmente para os consumidores finais) se não forem previamente estudadas em cotejo com outros deveres e obrigações a cargo daqueles que atuam na cadeia de produção e consumo. Em outras palavras, antes de mudar a legislação tributária, pura e simplesmente, faz-se necessária uma análise global, a qual contemple também aspectos regulatórios, ambientais e empresariais.

Vejamos o cenário atual de cada segmento da cadeia de produção e consumo de combustíveis e derivados de petróleo.

A Petrobras sustenta, com razão, que os combustíveis derivados de petróleo são “commodities” e, portanto, têm seus preços atrelados aos mercados internacionais. De fato, ante a natureza dos produtos e a competição internacional, figura a Petrobras como tomadora de preços ditados pelo mercado dito “competitivo”. Economicamente falando seu lucro advém sobretudo da redução de custos. E é por isso que muitos defensores da privatização enxergam-na como uma companhia ineficaz e pretendem livrá-la de todas as amarras – constitucionais e legais – que a envolvem enquanto sociedade de economia mista.

Interferência do governo federal nos preços praticados pela Petrobras está fora de cogitação no momento, porque sabidamente nociva, e inclusive já foi descartada de antemão pelo Presidente da República.

Daí a escolha conflitante (“trade off”) que deve ser resolvida pelo governo federal, a qual consiste basicamente na resposta adequada a esta pergunta: como conseguir que os combustíveis tenham preços acessíveis aos consumidores finais?

Reduzir artificialmente o preço praticado pela Petrobras é desaconselhável, como dito antes, haja vista os reflexos negativos para a companhia (perda de receita sem a contrapartida de redução de despesas) e, indiretamente, também para a acionista majoritária, que é a própria União.

Resta então a alternativa de diminuir o impacto no preço causado pelo valor agregado dos demais setores da cadeia: esferas de governo (tributos federais e o ICMS estadual/distrital), usinas e agroindústrias (produtoras de álcool anidro obrigatoriamente adicionado à gasolina e de biodiesel obrigatoriamente adicionado ao óleo diesel), distribuidoras de combustíveis (atacado) e postos revendedores de combustíveis (varejo).

O governo federal parece apostar na redução de tributos como solução.

Pretende-se com isso não afetar o setor privado. E nem poderia ser diferente. As usinas e agroindústrias precisam de ser incentivadas até mesmo para que o País cumpra os tratados e convenções internacionais que ratificou objetivando a redução da emissão de gases de efeito estufa de que a queima de combustíveis fósseis e o desmatamento das florestas são fatores destacados.

As distribuidoras de combustíveis, aliás, são as principais afetadas nessa política de preservação do meio ambiente, pois por intermédio do Programa Renovabio do Ministério de Minas e Energia – e em pleno contexto de grave crise econômica decorrente da pandemia de Covid-19 – foram incumbidas da aquisição compulsória de créditos de descarbonização (os chamados “CBios”), negociados em mercado de balcão a preços, por assim dizer, pouco convidativos.

Some-se a isso a incerteza gerada sobre a classificação desses CBios para efeitos de tributação. Perguntam-se as agroindústrias: as vendas de CBios são receitas operacionais ou receitas financeiras? Questionam-se as distribuidoras: a aquisição de CBios são custos operacionais (que autorizam a tomada de créditos no regime não cumulativo de Contribuição para o PIS e COFINS) ou custos financeiros (vedado o uso de créditos)?

Enfim, somados os custos e despesas da atividade e os tributos diretos e indiretos, as margens de lucros das distribuidoras estão em tendência de queda acentuada nos últimos anos, o que muito em breve pode levar a uma concentração indesejada de poder de mercado e limitação de concorrência, matéria que deve chamar a atenção não apenas da agência reguladora do setor (ANP), mas também ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE).

A posição dos postos revendedores de combustíveis é igualmente preocupante e o número de estabelecimentos que tiveram que “fechar suas portas” não deixa qualquer dúvida quanto ao estrangulamento dos lucros no setor varejista, pressionado por elevadas despesas e custos, sobretudo as de natureza trabalhista e a tributação sobre a folha de salários.

A saída deve ser criativa e não olhar apenas para a corte de tributos.

Para ilustrar, vale a pena ter uma ideia da composição dos preços da gasolina e do óleo diesel, conforme dados divulgados pela Petrobras (período de coleta de 24 a 30 de janeiro de 2021):

Dos gráficos acima é possível aferir que existe, de fato, uma carga tributária mais branda de ICMS e tributos federais na comercialização de óleo diesel, quando comparado com a gasolina.

Entretanto, a diferença dos tributos cobrados a menor – comparando as duas mercadorias – não é absorvida como vantagem pelas agroindústrias (o percentual nos preços continua em 14%) e pelas distribuidoras e postos varejistas (a diferença nos dois mercados é pequena, cerca de 2%), mas sim revertida como participação da Petrobras nos preços dos produtos.

Como garantir que uma redução da carga tributária de ICMS (hoje concentrada em boa parte nas próprias refinarias, por meio da substituição tributária) será efetivamente repassada nos preços de aquisição pelo consumidor? Como impedir que a refinaria absorva essa redução em benefício próprio, ou que assim o façam os já sobrecarregados atacadistas e varejistas? E nem se alegue em preços “tabelados”, o que seria realmente um retrocesso…

Como se vê, precisamos de uma política mais ampla, interministerial. Afinal, a realidade dos fatos não contempla análise estanque, apontando-se para a carga tributária estadual/distrital como a única vilã. Deve-se primar pela melhor atuação possível de cada agente que atua na cadeia de produção e consumo de combustíveis e derivados de petróleo, para que se garanta um desempenho global mais eficaz. Somente assim será possível a queda de preços de combustíveis a beneficiar os consumidores finais.

Francisco Fernando Bittencourt de Camargo

Advogado – Trajano Neto e Paciornik Advogados