O novo Código de Ética Médica, Resolução CFM n. 2.217/2018, foi publicado em 1º de novembro de 2018. Durante o período de 180 dias até sua entrada em vigor, é importante que os profissionais e estabelecimentos de saúde conheçam as mudanças, implementem as adequações necessárias e treinem suas equipes.
Em linhas gerais, em comparação com o Código de Ética Médica de 2009, grande parte da redação permanece inalterada, contudo, as modificações legislativas exigem atenção. Para ilustrar um ponto que não sofreu alterações, foi mantida intacta a proteção do sigilo do paciente e de seu prontuário, inclusive depois da morte. Vale recordar que o Parecer CFM nº 6/10 já salientava que “O prontuário médico de paciente falecido não deve ser liberado diretamente aos parentes do de cujus, sucessores ou não”.[1]
No que tange ao prontuário, entre as inovações a destacar, o novo Código de Ética Médica facilita a solução de questões relativas à cobertura de seguro de vida ao admitir o fornecimento às seguradoras de informações além das contidas na declaração de óbito, desde que mediante consentimento expresso do “representante legal” do falecido. O aumento da autonomia do ao representante legal é observado, também, na consagração da possibilidade de solicitar acesso ao prontuário caso o paciente não tenha condições de se expressar.
Tal como previsto no Código de Ética Médica de 2009, permanece admitida a possibilidade de apresentação do prontuário para a defesa da médica/médico ou quando autorizado pelo paciente ou por ordem judicial. A caracterização de hipótese legal de apresentação do prontuário, seja como um direito da médica/médico, seja como um dever, não afasta o dever de proteção do sigilo, que deve ser requerido pela médica/médico por ocasião da apresentação dos documentos.
Por força da nova resolução do Conselho Federal de Medicina, o destinatário do prontuário médico deixa de ser o perito e passa a ser o juízo requisitante. Esta mudança é positiva. Ocorre que em demandas cíveis, em que muitas vezes o objetivo buscado é a reparação de eventual dano (“indenização”) e a discussão de fundo recai sobre a existência de falha na atenção à saúde. Em tal contexto, a apresentação prévia prontuário por ocasião da defesa (muito antes da perícia) facilita uma prévia avaliação das partes sobre os riscos e possibilidades, aumentando a possibilidade de um acordo. Além disso, há elementos no prontuário que podem ser avaliados sem perícia, como a simples constatação de quais profissionais participaram do atendimento, qual a data de entrada no hospital, quando ocorreu a alta, etc.
Em relação a ensaios clínicos, o novo Código de Ética Médica prevê a possibilidade de acesso a prontuários para estudos retrospectivos, desde que autorizados por Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) ou pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP). Considera-se que esta possibilidade deve ser estendida também a estudantes de Medicina e pesquisadores. Ainda em relação a ensaios clínicos, o novo código exige um consentimento duplo para situações de vulnerabilidade, tais como pacientes crianças, adolescentes, com transtorno ou doença mental já que seu representante legal também deverá concordar.
Estas disposições da infralegais estabelecidas pelo Código de Ética Médica devem ser interpretadas em conjunto com a Lei do Prontuário Eletrônico (Lei n. 13.787/2018), a qual autoriza a digitalização dos documentos que compõe o prontuário, desde que:
- A digitalização reproduza todas as informações contidas nos documentos originais (em papel);
- Adote-se meios adequados de proteção de sigilo eletrônico e criptografia com certificado digital; para tanto recomenda-se o uso da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil) amplamente adotada no Judiciário.
Cumpridos os requisitos definidos pela legislação para a conversão em formato digital, os documentos originais poderão ser destruídos. Como prevê a Lei do Prontuário Eletrônico, em seu art. 4º, “Os meios de armazenamento de documentos digitais deverão protegê-los do acesso, do uso, da alteração, da reprodução e da destruição não autorizados”.
Vale recordar que os dados e documentos dos pacientes estão protegidos simultaneamente por outros diplomas legais, tais como o Código Civil e a Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD (Lei n. 13.709/2018). Na esfera da saúde, a LGPD, a qual merece estudo próprio, restringe o compartilhamento de dados sensíveis (incluídos os de saúde), bem como torna obrigatória a nomeação de um controlador dos dados, figura responsável por assegurar de forma ampla o uso e proteção dos dados, inclusive no que tange ao sigilo, restrições de acesso e compartilhamento com terceiros, bem como a obtenção e documentação do consentimento. A proteção de dados, portanto, deve integrar a estratégia de compliance na saúde.
Gabriel Schulman
Advogado – Trajano Neto e Paciornik Advogados
[1] CFM. PROCESSO-CONSULTA CFM Nº 4.384/07 – PARECER CFM Nº 6/10