Por Ravi Petrelli Paciornik, TNP Advogados

A recente Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) ajuizada pela Advocacia-Geral da União (AGU) perante o Supremo Tribunal Federal (STF) evidencia mais um capítulo da reiterada ânsia arrecadatória do Estado brasileiro. O objetivo declarado é obter a chancela da Corte Suprema para legitimar a inclusão de despesas tributárias, inclusive outros tributos,na base de cálculo do PIS e da Cofins. Em outras palavras, pretende-se validar a famigerada prática de tributar impostos sobre impostos, técnica já rejeitada pela jurisprudência consolidada no Tema 69 da repercussão geral, que excluiu o ICMS da base de cálculo dessas contribuições.

O art. 195, I, “b”, da Constituição Federal estabelece que as contribuições sociais podem incidir sobre o faturamento ou a receita da pessoa jurídica. O Supremo Tribunal Federal, ao apreciar o RE 346.084/PR, firmou entendimento de que faturamento corresponde à receita proveniente da atividade empresarial típica, ou seja, ingressos que se incorporam ao patrimônio do contribuinte como resultado da exploração de sua atividade econômica. No Tema 69, reiterou-se essa concepção ao excluir o ICMS da base do PIS e da Cofins, justamente porque não se trata de riqueza nova ou de produto da atividade empresarial, mas de mero trânsito contábil destinado ao Estado.

Essa moldura constitucional inviabiliza qualquer tentativa de ampliar a base de cálculo das contribuições para abarcar valores que não constituem faturamento, sob pena de subverter o conceito jurídico-constitucional fixado pela própria Corte Suprema.

O STF, ao decidir o RE 574.706 (Tema 69), pacificou o entendimento de que o ICMS não compõe a base de cálculo do PIS e da Cofins porque não se confunde com receita ou faturamento. Tratava-se de mero ingresso: valor que transita pela contabilidade da empresa, mas com destinação própria e vinculada ao Estado, sem se incorporar ao patrimônio do contribuinte.

Dessa decisão derivaram teses tributárias correlatas, como a exclusão do ISS da base de cálculo do PIS e da Cofins (Tema 118), a exclusão do próprio PIS/Cofins de suas bases de cálculo (Tema 1067) e debates menores envolvendo créditos presumidos de ICMS (Tema 843). Todas essas teses se estruturam na mesma lógica: não é possível ampliar artificialmente a base de cálculo de contribuições sobre “receitas” que, em verdade, não representam faturamento da empresa.

A doutrina nacional é clara ao afastar a ideia de que tributos possam se confundir com receita da empresa. Ricardo Lobo Torres adverte que a Constituição impõe limites materiais ao poder de tributar, de forma a preservar o núcleo de proteção do contribuinte contra exigências desproporcionais ou irrazoáveis. Roque Antonio Carrazza, por sua vez, ensina que a capacidade contributiva é cláusula de justiça fiscal que impede a tributação de valores que não representam riqueza efetiva do sujeito passivo.

Se o tributo arrecadado não se incorpora ao patrimônio da pessoa jurídica, não há que se falar em receita tributável, sob pena de exigir-se contribuição sobre riqueza inexistente. O movimento da AGU, ao tentar legitimar tal incidência, viola frontalmente essa construção doutrinária e a própria lógica do sistema tributário.

Assim, a linha argumentativa já se encontra consolidada. Receitas de mero trânsito, com destinação legal obrigatória, não pode ser enquadradas no conceito de faturamento, e, portanto, não podem servir de suporte fático para a incidência das contribuições sociais.

Apesar da clareza do precedente, a AGU sustenta que o STF jamais teria afirmado a inconstitucionalidade geral da incidência de um tributo sobre outro, limitando-se ao exame das peculiaridades do ICMS. A ação busca, assim, uma “blindagem” temporária até a entrada em vigor plena da reforma tributária, que, por sua vez, já prevê regras que afastam expressamente a tributação em cascata.

A estratégia revela-se paradoxal: o próprio legislador constituinte derivado, ao aprovar a reforma, reconheceu a irrazoabilidade de tributos incidirem sobre tributos. Ainda assim, a União insiste em obter, no interregno, uma decisão que assegure receitas extraordinárias, estimadas em mais de R$ 117 bilhões, segundo dados da PGFN.

A busca por arrecadação imediata por meio da tributação de tributo sobre tributo ignora os efeitos econômicos e sociais dessa política. Em termos práticos, a legitimação dessa prática acarretará o repasse direto desses custos às cadeias produtivas, com reflexos inflacionários evidentes.

Ademais, a medida potencializará a litigiosidade: a PGFN estima a existência de mais de 113 mil processos discutindo o tema, número que certamente se ampliará caso a ADC prospere. A consequência será exatamente a oposta à prometida pelo governo, que insiste em afirmar que sua política busca simplificação e segurança jurídica.

Setores de margem reduzida, como prestadores de serviços, serão particularmente atingidos, pois terão sua base de cálculo artificialmente ampliada sem qualquer correspondência com aumento real de receita ou faturamento.

A ADC, se acolhida, produzirá efeitos calamitosos. Em primeiro lugar, desestabiliza a coerência do sistema tributário, já que reabre discussão sobre temas que pareciam pacificados. Em segundo lugar, atinge diretamente contribuintes que, confiando na jurisprudência do STF, estruturaram suas defesas e obtiveram vitórias judiciais e administrativas relevantes.

Não se trata apenas da tese do ICMS: o impacto recairá sobre o ISS na base do PIS/Cofins, sobre a autoinclusão do PIS/Cofins em sua própria base e sobre outras discussões análogas. Todas essas teses, que seguem a mesma lógica do Tema 69, passam a sofrer ameaça real de esvaziamento.

A consequência prática é a erosão da segurança jurídica, pois se transmite ao contribuinte a mensagem de que, mesmo após uma tese ser consolidada no STF, novas tentativas governamentais podem rediscuti-la sob outra roupagem.

A Contradição da Reforma e a Escalada Arrecadatória

É curioso observar que a Emenda Constitucional nº 132/2023, ao instituir o IBS e a CBS, previu expressamente a eliminação da tributação em cascata, vedando a incidência de tributo sobre tributo. Em outras palavras, o próprio legislador constituinte derivado reconheceu a inadequação dessa prática.

Diante disso, causa perplexidade que, em plena transição para um sistema que afasta tal distorção, a União busque no STF uma decisão que legitime, ainda que provisoriamente, exatamente o que a reforma pretendeu corrigir. A incoerência é flagrante: pretende-se manter uma prática arrecadatória rejeitada pelo legislador, apenas para assegurar receitas extraordinárias no período anterior à plena vigência da nova ordem tributária.

É sintomático que, ao mesmo tempo em que busca legitimar a tributação de tributo sobre tributo, o governo tenha aprovado uma reforma do consumo que amplia de forma expressiva a carga tributária sobre setores antes não atingidos, como a locação e a compra e venda de imóveis,sob as novas siglas IBS e CBS, com alíquota efetiva de aproximadamente 8,4% e 14%, muito superior aos atuais 3,65% do regime de PIS e Cofins cumulativos.

No campo da renda, segue-se a mesma lógica expansionista, com novos mecanismos de incidência, sempre sob a justificativa de equilíbrio fiscal, mas sem qualquer movimento sério de contenção dos gastos públicos.

O que se observa, portanto, é a perpetuação da velha lógica: aumentar a arrecadação a qualquer custo, mesmo que para isso seja necessário ressuscitar métodos tributários já rejeitados pelo Supremo Tribunal Federal.

A ADC ajuizada pela AGU deve ser lida como mais uma tentativa de reviver, pela via transversa, a tributação de impostos sobre impostos, contrariando a essência do Tema 69 e a lógica constitucional do conceito de faturamento.

O risco é evidente: abrir caminho para o enfraquecimento de conquistas tributárias recentes, afetar a confiança legítima dos contribuintes e gerar instabilidade em um momento em que o país já se prepara para conviver com a complexidade de um novo sistema tributário.

Permitir que a ADC prospere seria não apenas retroceder em relação às conquistas do Tema 69, mas também legitimar a prática mais perversa do sistema tributário: a tributação de riqueza inexistente. Trata-se de um verdadeiro ataque à racionalidade do sistema, à segurança jurídica e à confiança legítima do contribuinte.

Cabe ao STF resistir à tentação arrecadatória e reafirmar sua função contramajoritária de proteção das garantias constitucionais. A Constituição não pode ser moldada ao sabor das necessidades fiscais momentâneas, mas deve servir de limite intransponível contra o expansionismo fiscal. Qualquer decisão em sentido diverso significará não apenas uma derrota jurídica, mas uma derrota civilizatória, que fragilizará a relação entre Estado e contribuinte e comprometerá a credibilidade do sistema tributário nacional.