Por: Ravi Paciornik, TNP Advogados
A proposta de reforma do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF), relatada pelo deputado Arthur Lira, vem sendo anunciada como um avanço histórico rumo à justiça fiscal. O governo afirma que, com a ampliação da faixa de isenção até R$ 5 mil mensais, trabalhadores de baixa e média renda terão maior alívio no bolso. Ao mesmo tempo, defende-se que a cobrança de um imposto mínimo de 10% sobre rendimentos acima de R$ 50 mil mensais faria com que “os mais ricos” passassem a contribuir mais.
Mas a questão central é: estamos, de fato, diante de uma reforma estruturante que corrige distorções históricas, ou trata-se de mais um movimento politicamente conveniente e fiscalmente arrecadatório?
O primeiro ponto positivo e inegável é a atualização da tabela. Trabalhadores com salários de até R$ 5 mil ficarão totalmente isentos de IRPF. Além disso, criou-se uma faixa de isenção parcial entre R$ 5.000,01 e R$ 7.350,00, que reduz o imposto de forma decrescente até zerar no limite superior. Segundo projeções, cerca de 500 mil pessoas serão beneficiadas, com impacto estimado de R$ 17 bilhões em três anos.
Esse ajuste reduz a defasagem histórica da tabela do IR, que corroía renda líquida de assalariados médios, e devolve algum fôlego ao consumo. Contudo, ao mesmo tempo em que o discurso enfatiza a proteção da classe trabalhadora, a conta precisa ser paga.
O imposto mínimo: mirando supostamente os mais ricos
A medida de maior impacto político é a criação de uma alíquota mínima de 10% para rendimentos anuais acima de R$ 600 mil, chegando ao teto de 10% para quem recebe mais de R$ 1,2 milhão ao ano.
O discurso oficial da reforma do Imposto de Renda é de que esse dispositivo corrige distorções, já que parte dos contribuintes de altíssima renda paga proporcionalmente menos imposto que assalariados de classe média.
De fato, números da Receita mostram que o 0,1% mais rico, com rendimentos médios de R$ 392 mil mensais, recolhe apenas 7,4% de IRPF efetivo, e no 0,01% mais rico esse percentual cai para 3%. No papel, a regra serviria para corrigir tal assimetria.
No entanto, aqui reside a contradição central: falar em tributar “supostamente os mais ricos” é mais narrativa política do que realidade fiscal. O imposto mínimo não enfrenta as distorções estruturais do sistema, como a fragmentação entre regimes, os benefícios setoriais e a ausência de uma tributação progressiva real sobre grandes rendimentos de capital. Ao contrário, cria um piso artificial que garante aumento de arrecadação, sem assegurar redistribuição consistente. E, considerando o efeito combinado da inflação, dos reajustes salariais e do crescimento dos pequenos negócios, quem tende a ser progressivamente alcançado por esse mínimo não será apenas a elite econômica, mas a classe média de profissionais liberais e pequenos empresários.
Dividendos: tributação parcial, seletiva e em duplicidade
A promessa de “finalmente tributar dividendos” vem embalada em forte apelo simbólico, mas, ao olhar com rigor técnico, o desenho revela muito mais de arrecadação do que de justiça. O relatório prevê cobrança de 10% sobre dividendos que ultrapassem R$ 50 mil mensais por empresa, pagos a pessoas físicas, com retenção na fonte e compensação no ajuste anual.
À primeira vista, parece uma correção importante. Contudo, a análise mais detida mostra uma fragilidade fundamental: a tributação dos dividendos ignora que tais valores já sofreram incidência de impostos elevados na pessoa jurídica, que paga alíquotas que chegam a 34% ou mais sobre o lucro. A isenção dos dividendos, historicamente adotada, nunca significou “benefício injusto”, mas sim uma forma de concentrar a tributação e a fiscalização diretamente na empresa, simplificando o sistema. Tributar novamente na distribuição significa onerar duas vezes a mesma base, o lucro societário.
Portanto, não se trata de uma simples tributação de dividendos, mas de um mecanismo de dupla incidência sobre os lucros empresariais: primeiro na empresa, depois no sócio. Na prática, a medida é exclusivamente arrecadatória e política, concebida para aumentar a receita sem admitir que, em termos econômicos, a renda do investidor ou do empresário já é tributada de maneira robusta.
Além disso, a exclusão de algumas receitas (como heranças, poupança e títulos incentivados) da base do imposto mínimo mostra que a reforma não busca uma verdadeira equidade. Ela se limita a abrir mais uma frente de arrecadação, agora sobre profissionais liberais, médios empresários e investidores que, diante da inflação e da recomposição de rendimentos, acabam englobados nessa nova faixa. Assim, não são apenas “os super-ricos” que pagarão mais: a classe média empreendedora será, novamente, a principal financiadora da conta.
Outro ponto central é o destino do excedente arrecadado. O parecer de Lira determina que os recursos serão redistribuídos prioritariamente a Estados e Municípios via Fundos de Participação e, se ainda houver sobra, utilizados para reduzir a futura alíquota da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS).
Ao impedir que essa arrecadação adicional seja usada para gerar superávit primário, o relator sinaliza que a reforma não tem como prioridade o equilíbrio fiscal de longo prazo, mas sim a satisfação imediata de demandas políticas e federativas.
Estudos do Itaú BBA sugerem que, mesmo com os ajustes, o impacto fiscal líquido será “relativamente equilibrado”. O alívio para trabalhadores e a ampliação da isenção custam cerca de R$ 20 bilhões, mas a criação da alíquota mínima e a tributação parcial dos dividendos compensam essa renúncia.
Na prática, a reforma do Imposto Renda não rompe com a lógica arrecadatória do sistema tributário brasileiro, que permanece concentrado em bases fáceis de tributar e seletivo em suas correções. Trata-se menos de uma “revolução pela justiça fiscal” e mais de uma engenharia política para ampliar isenções sem comprometer receitas.
A reforma do Imposto de Renda é apresentada como resposta às desigualdades, mas, olhando de perto, revela-se uma medida essencialmente política. A ampliação da isenção até R$ 5 mil é um passo necessário e justo; já a alíquota mínima de 10% e a tributação limitada dos dividendos atingem supostamente os mais ricos, mas servem, sobretudo, para equilibrar a conta da renúncia fiscal.
O discurso da justiça tributária existe, mas o desenho mostra que o real objetivo é arrecadar mais, sem enfrentar de frente as distorções profundas do sistema. Em suma, a reforma mexe no bolso de todos, mas corrige pouco daquilo que, de fato, sustenta a desigualdade tributária brasileira.